domingo, 27 de maio de 2007

A história tem um cheirinho a moralismo bafiento mas faz-nos pensar um pouco nisto do virtual e da evolução estonteante das novas tecnologias que é ainda forma de exclusão para muitos.
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"Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento, pois queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia atribulado, para comer e consertar alguns bugs de programação de um sistema que estava desenvolvendo, além de planejar minha viagem de férias que a tempos não sei o que são. Pedi um filé de salmão com alcaparras na manteiga. Uma salada e um suco de laranja, afinal de contas fome é fome, mas regime é regime né? Abri meu notebook e levei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:
- Tio, dá um trocado?
- Não tenho, menino.
- Só uma moedinha para comprar um pão.
- Está bem, compro um para você.
Para variar, minha caixa de entrada esta lotada de e-mails. Fico distraído vendo poesias, as formatações lindas, dando risadas com as piadas malucas. Ah! Essa música me leva a Londres e as boas lembranças de tempos idos.
- Tio, pede para colocar margarina e queijo também.
Percebo que o menino tinha ficado ali.
- Ok. Vou pedir, mas depois me deixe trabalhar. Estou muito ocupado, tá?
Chega a minha refeição e junto com ela meu constrangimento. Faço o pedido do menino, e o garçom me pergunta se quero que mande o garoto ir embora. Meus resquícios de consciência, me impedem de dizer. Digo que está tudo bem!
- Deixe-o ficar. Traga o pão e uma refeição descente para ele.
Então ele sentou a minha frente e perguntou:
- Tio o que está fazendo?
- Estou lendo uns e-mails.
- O que são e-mails?
- São mensagens eletrônicas mandadas por pessoas via Internet.
Sabia que ele não ia entender nada, mas, a título de livrar-me de maiores questionários disse:
- É como se fosse uma carta, só que via Internet.
- Tio você tem Internet?
- Tenho sim, essencial ao mundo de hoje.
- O que é Internet?
- É um local no computador onde podemos ver e ouvir muitas coisas: notícias,músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.
- E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, novamente na certeza que ele pouco vai entender e vai me liberar para comer minha refeição, sem culpas.
- Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos pegar, tocar. Lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer. Criamos nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.
- Legal isso.. Gostei!
- Mocinho, você entendeu que é virtual?
- Sim, também vivo neste mundo virtual.
- Você tem computador?
- Não, mas meu mundo também é desse jeito ... virtual. Minha mãe fica todo dia fora, só chega muito tarde, quase não a vejo, eu fico cuidando do meu irmão pequeno, que vive chorando de fome e eu dou água para ele pensar que é sopa, Minha irmã mais velha sai todo dia, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, pois ela sempre volta com o corpo. Meu pai está na cadeia há muito tempo. Mas sempre imagino nossa família toda junta em casa. Muita comida, muitos brinquedosde no natal. E eu indo ao colégio para virar médico um dia. Isso é virtual não é tio?
Fechei meu notebook, não antes que as lágrimas caíssem sobre o teclado. Esperei que o menino terminasse de literalmente "devorar" o prato dele. Paguei a conta e dei o troco ao garoto que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um:
- "Brigado tio você é legal!".
Ali, naquela instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias. Enquanto a realidade cruel rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos!"

1 comentário:

Luís Ferreira disse...

Bem, Luísa, um "bravo" pra ti (ainda que não tenhas sido tu a escrever o texto, creio). Nasci no Brasil e já há algum tempo que não me lembrava do Marcelo, um menino de rua do Rio que ficou à guarda e responsabilidade da minha família. Eu era adolescente e voluntário do Projeto Meninos de Rua nos idos de 1986... Virtual para ele foi a nossa vida, civilizada, pequeno-burguesa, letrada. Fugiu da escola, fugiu de casa, fugiu de nós... Nunca nos deveríamos esquecer que a ciência e a técnica se não servir a mairoridade, a libertação e a felicidade do homem, não serve nada nem ninguém, ou serve só alguns, numa indiferença que há-de marcar a nossa má-consciência e amesquinhar e apequenar a nossa humanidade.
Fica a sugestão de um livro lançado há poucos dias e que começo a ler: Fernando Nobre (AMI), "Gritos contra a Indiferença".